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18 de nov. de 2013

Universo paralelo de Elisa

O ritual de Elisa se repetia. Acordava quase sempre atrasada, calçava suas botas, vestia o jeans surrado e ouvia as críticas da sua mãe quanto ao seu estilo grunge. Não penteava os cabelos, não havia tempo. Aquilo a tornava mais sexy. Desastrada passava correndo na frente dos carros e lá já estava o seu capuccino. “Quase quente, quase frio” era o que dizia para Tom. Este era proprietário de um café em frente ao prédio que ela morava. Já sabia da sua paixão por fotografias, café e revistas. Com camisetas recortadas e a barriga quase sempre a mostra, ela seguia pelas vielas da cidade até chegar à redação. Pegava o elevador para o último andar. “Um pouco longe do inferno”, brincava.

Ao chegar, trocava as botas pelo salto, soltava o cabelo e passava gloss. Ali ficava apenas observando o comportamento das pessoas pela janela. Imaginava o que cada uma delas gostaria de ter para se tornarem um pouco menos invisíveis e um pouco mais estilosas.

Ela lia pensamentos. Com apenas vinte e um anos, designer de uma revista de moda queria sair da casa da mãe, mudar-se para Las Vegas e dançar em cassinos para homens com barba. Elisa vivia num universo paralelo que ninguém conhecia. Ela sempre pareceu não dar atenção ao que saia da boca das pessoas, mas não. Elisa ouvia e mais que isso, sentia. Sentia os outros. Sabia dos desejos mais tórridos do porteiro do seu prédio. Conhecia as fantasias da faxineira e ainda, era obrigada a perceber as lingeries, quase sempre mínimas, da cozinheira.

Ninguém ligava para o que ela sabia. Apenas a deixava fumar olhando os prédios, apontando as pessoas. Às vezes Elisa sorria. Segundo ela a graça estava na bizarrice do mundo. Dizia que associava os desejos à moda. Ninguém nunca entendia, mas dava certo. Elisa vendia milhares de exemplares e no final do mês recebia uma merreca, que nem era em dólar ou euro. “Estupidez do real” - gostava de deixar clara a ambiguidade da frase.

Adepta de hipnóticos para dormir e doce para se animar, passava o seu tempo livre caminhando por debaixo de arco-íris. Quando o efeito acabava ela pintava sua face com cores pálidas e saia para beber wiske em algum lugar. Sem gelo e duas doses, era previsível. Embriagada, dormia nas mesas de bares, pagava e ia embora. Magra, usava anfetaminas para se manter. “A moda é tão cruel quanto o mundo real; a diferença é que a moda disfarça a tristeza com cores e falso glamour”, orava baixinho enquanto pegava água para mais um comprimido descer garganta abaixo.

Naquela manhã, Elisa acordara pior humorada do que o normal. Logo pela manhã, comprou um maço de palheiros antes de ir pegar o tradicional capuccino, para seu azar este não estava pronto quando entrou no café de Tom. “como sempre atrasada, hein menina!”, comentou Tom. “Gostaria que meu capuccino estivesse pronto aqui no balcão, como sempre. Nem quente, nem frio devo repetir”, retrucou ela com grosseria. Tom apenas a olhou de lado e foi preparar a bebida. Isso levava alguns minutos. Elisa sentou-se no banco do balcão do café, colocou sua bolsa em seu colo e a pasta de desenhos no balcão. Irritou-se com a demora do seu café, gritou apressando Tom e sem esperar desceu enfurecida do banco. Ao sair esqueceu os desenhos.

O homem da mesa do lado ficou admirando a beleza triste de Elisa e foi quem guardou a nova coleção. Correu, tentou chamá-la para devolver. Mas a única coisa que fez foi ligar os fones de ouvido e cantar no caminho os hits quase sempre sombrios de Lana Del Rey.

No mundo de Elisa, ela mantinha uma forte amizade com a cantora e fazia amor com caras mais velhos, como via nos clipes. Ela era admiradora do comportamento sexual das pessoas. A coleção esquecida no café de Tom, mostrava bem isso. T-shirts quase sempre escritas frases do tipo “Me pegue, não me deixe cair. Me ame”, em francês para tornar mais interessante para quem sabia o significado. E a arte das letras eram inspiradas no clima de São Paulo. A grande metrópole dona de vilas e trens. Elisa gostava disso. Era uma anônima no sul do país e uma admirada it girl na cidade metropolitana. “São Paulo tem um brisa inspiradora. As pessoas gostam disso e por isso compram as camisetas. Mesmo em francês, mesmo sem saber o que está escrito”, afirmava a cada coleção que desenhava. Era questionada sempre porque o fascínio por São Paulo. Ela não entendia, mas como em Las Vegas ela sonhava dançar em balcões de bares de São Paulo para homens de barba e tatuagens. Sentia que seu lugar era lá. Vestindo lingeries em bares. Traindo a sua profissão.

O sujeito que estava com os desenhos de Elisa era Jack. Ele era de Nova York, estava em Curitiba para encontrar em alguém o que a maioria dos brasileiros não tinham. Nunca dissera qual a diferença. Mas era perceptível que queria ver moças como Elisa dançando nos balcões de bares e servindo um wíske sem gelo para ele. Ego masculino. Todos são iguais.

Mesmo seguindo Elisa não conseguiu alcançá-la. Voltou ao café de Tom e perguntou sobre a moça. Mas o proprietário do café não sabia nada além dos gostos de Elisa por fotografia, café e revistas. “Nem a idade eu sei. Elisa é tão misteriosa quanto o conteúdo dessa pasta que você está nas mãos. Explore”, aconselhou Tom. Jack pagou a conta e voltou para o hotel que estava hospedado. Por coincidência em frente à casa dela. Ficou observando os desenhos e imaginando o repertório de fetiches que existia naquela mente. Isso o interessava.

Jack tinha barba e tatuagens, 31 anos – dez a mais que Elisa – e mesmo sendo de NY, conhecia cassinos em Las Vegas. Elisa não percebeu isso no café e nem depois. No outro dia ele a aguardava no estabelecimento de Tom no mesmo horário do dia anterior. Mas Elisa não apareceu. Passou na porta do café apressada, com um óculos de sol e os cabelos soltos. Dessa vez longe das botas e do mal humor. Elisa estava leve e brincava com todos na rua, menos com Tom que para ela servia apenas para fazer capuccinos.

 Jack andou atrás da garota e a chamou pelo nome. Elisa estranhou, olhou brava para o homem que apenas entregou a pasta de desenhos. A moça abriu a catálogo e começou a rasgar página, por página. Sem dizer nada. Nem agradeceu. Depois disso soltou os pedaços dos papéis ao vento, respirou aliviada e foi embora. Essa atitude deixou Jack intrigado. Observou Elisa por dias. Sentiu que a diferença que buscava nos brasileiros havia encontrada na face pálida da designer que tanto vendia revistas.

Elisa voltou para casa e Jack foi em um bar de esquina beber wiske em dose dupla e previsivelmente sem gelo. De repente, entra no local ela vestida como em seu sonhos com Las Vegas e São Paulo. Usava botas de cano alto preta, batom vermelho, jeans e um top deixando a barriga a mostra. Elisa havia feito uma tatuagem no dia anterior.

Entrou, pediu uma garrafa de wiske. Bebeu algumas doses e ao som de “Heart” da Taylor Momsen dançou sensualmente no balcão do bar. Exatamente como nos seus sonhos. Com a garrafa de wiske na mão, passava os dedos pelos cabelos e bebia deixando escorrer algumas gotas em seu corpo. Olhava fixamente para Jack que ficou hipnotizado com a performance deprimente e ao mesmo tempo admirável. Retribuiu o olhar. Elisa sorria, bebia wíske, se libertava. Não estava em Las Vegas nem em São Paulo. Mas naquele momento realizava um sonho. De forma distorcida um pouco. Ainda morava com seus pais, não era mais funcionária de revista e sua fama em São Paulo desaparecia a cada dia. Não ganhava euro, dólar nem real. Apenas torrava o restante do que lhe sobrava naquela noite. Grana e tristeza.

Naquela noite, Elisa estava incrivelmente sexy. Jack levantou do seu lugar quando o final da música se aproximava, a pegou pela cintura, ajudou descer do balcão de madeira antiga e a beijou. Não disse mais nada. Elisa retribuiu e quando terminou, Jack levou uma bofetada no rosto. Elisa que saiu do bar deixando o wíske. Ele foi atrás dela. Pelas ruas mal iluminadas de esquina de subúrbio Elisa fazia labirinto nos olhos de quem a procurava. Ele com o farol ligado caçava sua fatal inspiração, somo uma presa.

Encontrou Elisa sentada em um beco de uma rua sem saída. Quando viu o carro estacionado em sua frente teve medo e xingou Jack. Quando ele ousou se aproximar ganhou uma nova bofetada no rosto e vários murros nos braços. Ele a conteve com força. Elisa se assustou. Gritando perguntou como tinha roubado seus desenhos, como sabia o seu nome e porque a seguia há mais de uma semana. Ele apenas disse “Não roubei. Você esqueceu no Tom. Seu nome estava assinado em todos e o fato de seguir é pelo motivo de nunca ter encontrado mulher tão misteriosa em lugar algum”. Elisa caiu em choro. Jack a levou para o seu carro e sem saírem do beco a esperou chorar. Elisa contou em lágrimas que havia sido demitida da revista por ter perdido a coleção que desfilaria na próxima semana que por sinal, era a encontrada por Jack. Que sua situação em casa não era fácil. Tinha uma mãe alcoólatra e um pai ausente.

 Nesse momento mostrou sua face de menina, quase adolescente. Frágil. Jack a admirou por isso. Deu um abraçou forte, confortando-a. Elisa virou o rosto, olhou dentro dos seus olhos e o beijou até o amanhecer. Fizeram amor ali mesmo, dentro do carro e ele teve a certeza que havia encontrado em Elisa o perfil diferenciado no Brasil.

No decorrer dos dias Jack esqueceu da sua missão, do tal perfil. Viveu um romance com Elisa. Encontros de madrugada, realizações de fetiches. Quase sempre ela dormia no hotel com ele. Acordava de madrugada, acendia um cigarro e desenhava olhando o sono imperturbável dele. Depois voltava para cama. Ao amanhecer, Jack fazia café e a acordava com sorrisos. Abria a janela do quarto, e por entre a cortina reparava a casa de Elisa. Sempre comentavam que como não se encontraram antes. Finalmente, ela foi feliz. Viu em Jack sua redenção. Não sabia nada dele e era isso que tornava o relacionamento mais interessante. “A sensação de você estar dormindo com um estranho é loucamente boa”, comentava em seu diário. Elisa também escrevia.

Quase nunca ia em casa. Preocupada sua mãe percebia que ela tinha estado lá pelas cartelas dos remédios de Elisa sempre diminuíam. Não sabia que a filha estava demitida. Não conhecia o deu novo romance. Até que um dia viu em um porta retratos no quarto de Elisa uma foto de Jack. Tinha um dedicatória. “Minha melhor perdição, como posso amar tanto?” com uma marca de batom. Era a letra de Elisa. A felicidade da filha a confortou. Só não imaginava que estava tão perto.

Certa vez, Elisa não mais voltou. Foi encontrada morta em um beco do subúrbio de Curitiba. No seu bolso foi encontrado um papel com os seguinte dizeres “Como a amei. Não poderia dividir. Nem com o mundo, nem mesmo com o capuccino do Tom. Amava cigarro e sexo, eu também. Encontrei a diferença na brasileira misteriosa. Próxima cultura, outro nome, outra vida. Minha princesa, não fique triste. Não brigue, não chore.  Te amo. Até breve. Sou do mundo, me perdoe. Seu melhor assassino”. Sua mãe sofreu pela morte de Elisa, mas não sentiu saudades. Bebia para anestesiar. Morreu de cirrose dois anos depois. Jack nunca mais foi encontrado. Não com esse nome e nem nesse país. Deixou um punhal e uma poça do sangue de Elisa no quarto do hotel. Pagou em dólar e se foi. Estupidamente elegante. Psicopata, não permitiu que Elisa dançasse em cassinos de Las Vegas.  

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